Nietzsche: Crepúsculo dos ídolos - Aula 1


Prólogo e o problema de Sócrates


Também este livro – seu título já o revela – é sobretudo um descanso, um torrão banhado de sol, uma escapada para o ócio de um psicólogo. Talvez também uma nova guerra? E serão perscrutados novos ídolos ? [“E novos ídolos são auscultados?”, na tradução de Marco Antonio Casanova]... Este pequeno livro é uma grande declaração de guerra; e, quanto ao escrutínio de ídolos, desta vez eles não são ídolos da época, mas ídolos eternos, aqui tocados com o martelo como se este fosse um diapasão – não há, absolutamente, ídolos mais velhos, mais convencidos, mais empolados... E tampouco mais ocos... Isso não impede que sejam os mais acreditados; e, principalmente no caso mais nobre, tampouco são chamados de ídolos... (Crepúsculo dos ídolos, Prólogo, Companhia das letras, 2006, tradução de Paulo César de Souza)


Em todos os tempos, os homens mais sábios fizeram o mesmo julgamento da vida: ela não vale nada... Sempre, em toda parte, ouviu-se de sua boca o mesmo tom – um tom cheio de dúvida, de melancolia, de cansaço da vida, de resistência à vida. Até mesmo Sócrates falou, ao morrer. “Viver – significa há muito estar doente: devo um galo a Asclépio, o salvador”. Mesmo Sócrates estava farto. - O que prova isso? O que indica isso? - Antigamente se teria dito (- oh, foi dito, e em voz alta, e com os nossos pessimistas à frente!): “De todo modo, deve haver alguma verdade nisso! O consensus sapientium [consenso dos sábios] prova a verdade”. - Ainda falaremos assim hoje? Podemos falar assim? “De todo modo, deve haver alguma doença nisso” - é o que nós respondemos: esses mais sábios de todos os tempos, é preciso antes observá-los de perto! Talvez todos eles já não tivessem firmeza nas pernas? Fossem tardios? titubeantes? decadénts? Talvez a sabedoria apareça na Terra como um corvo, que se entusiasma com um ligeiro odor de cadáver?... (Crepúsculo dos ídolos, II, § 1, Companhia das letras, 2006)


Esse pensamento desrespeitoso, de que os grandes sábios são tipos de decadência, ocorreu-me primeiramente um caso em que o preconceito dos doutos e indoutos se opõe a ele do modo mais intenso: eu percebi Sócrates e Platão como sintomas de declínio, como instrumentos da dissolução grega, como pseudogregos, antigregos (Nascimento da tragédia, 1872). Aquele consensus sapientiae – compreendi cada vez mais – em nada prova que eles tivessem razão naquilo acerca do qual concordavam: prova, isto sim, que eles próprios, esses mais sábios dos homens, em alguma coisa coincidiam fisiologicamente, para situar-se – ter de situar-se – negativamente perante a vida. Juízos, juízos de valor acerca da vida, contra ou a favor, nunca podem ser verdadeiros, afinal; ele têm valor apenas como sintomas, são considerados apenas enquanto sintomas – em si, tais juízos são bobagens. (Crepúsculo dos ídolos, II, § 2, Companhia das letras, 2006)


Quando há necessidade de fazer da razão um tirano, como fez Sócrates, não deve ser pequeno o perigo de que uma outra coisa se faça de tirano. A racionalidade foi então percebida como salvadora, nem Sócrates nem seus “doentes” estavam livres para serem ou não racionais – isso era de rigueur [obrigatório], era seu último recurso. O fanatismo com que toda a reflexão grega se lança à racionalidade mostra uma situação de emergência: estavam em perigo, tinham uma única escolha: sucumbir ou – ser absurdamente racionais... O moralismo dos filósofos gregos a partir de Platão é determinado patologicamente; assim também a sua estima da dialética. Razão = virtude = felicidade significa tão só: é preciso imitar Sócrates e instaurar permanentemente, contra os desejos obscuros, uma luz diurna – a luz diurna da razão. É preciso ser prudente, claro, límpido a qualquer preço: toda concessão aos instintos, ao inconsciente, leva para baixo... (Crepúsculo dos ídolos, II, § 10, Companhia das letras, 2006)


Indiquei como Sócrates fascinava: ele parecia ser um médico, um salvador. É necessário também apontar o erro que havia em sua crença na “racionalidade a qualquer preço”? - Os filósofos e moralistas enganam a si mesmos, crendo sair da decadénce ao fazer-lhe guerra. Sair dela está fora de suas forças: o que elegem como meio, como salvação, é apenas mais uma expressão da decadénce – ele mudam sua expressão, mas não a eliminam. Sócrates foi um mal-entendido: toda a moral do aperfeiçoamento, também a cristã, foi um mal-entendido... A mais crua luz do dia, a racionalidade a todo custo, a vida clara, fria, cautelosa, consciente, sem instinto, em resistência aos instintos, foi ela mesma apenas uma doença, uma outra doença – e de modo algum um caminho de volta à “virtude”, à “saúde”, à felicidade... Ter de combater os instintos – eis a fórmula da decadénce: enquanto a vida ascende, felicidade é igual a instinto. (Crepúsculo dos ídolos, II, § 11, Companhia das letras, 2006)