Nietzsche - Assim falou Zaratustra - Aula 1

 

Edição principal utilizada: Companhia das Letras, 2011, com tradução de Paulo César de Souza.


Prólogo de Zaratustra (trechos)


1.


Aos trinta anos de idade, Zaratustra deixou sua pátria e o lago de sua pátria e foi para as montanhas. Ali gozou do seu espírito e da sua solidão, e durante dez anos não se cansou. Mas enfim seu coração mudou — e um dia ele se levantou com a aurora, foi para diante do sol e assim lhe falou:

“Ó grande astro! Que seria de tua felicidade, se não tivesses aqueles que iluminas?

Há dez anos vens até minha caverna: já te terias saciado de tua luz e dessa jornada, sem mim, minha águia e minha serpente.

Mas nós te esperamos a cada manhã, tomamos do teu supérfluo e por ele te abençoamos.

Olha! Estou farto de minha sabedoria, como a abelha que juntou demasiado mel; necessito de mãos que se estendam.

Quero doar e distribuir, até que os sábios entre os homens voltem a se alegrar de sua tolice [“loucura”, na tradução de Mário da Silva]  e os pobres, de sua riqueza.

Para isso devo baixar à profundeza: como fazes à noite, quando vais para trás do oceano e levas a luz também ao mundo inferior, ó astro abundante!

Devo, assim como tu, declinar, como dizem os homens aos quais desejo ir.

Então me abençoa, ó olho tranquilo, capaz de contemplar sem inveja até mesmo uma felicidade excessiva!

Abençoa a taça que quer transbordar, para que a água dela escorra dourada e por toda parte carregue o brilho do teu enlevo!

Olha! Esta taça quer novamente se esvaziar, e Zaratustra quer novamente se fazer homem.”

— Assim começou o declínio de Zaratustra.

 

2.

“Não me é estranho esse andarilho: por aqui passou há muitos anos. Chamava-se Zaratustra; mas está mudado.

Naquele tempo levavas tuas cinzas para os montes: queres agora levar teu fogo para os vales? Não temes o castigo para o incendiário?

Sim, reconheço Zaratustra. Puro é seu olhar, e sua boca não esconde nenhum nojo. Não caminha ele como um dançarino?

Mudado está Zaratustra; tornou-se uma criança Zaratustra, um despertado é Zaratustra: que queres agora entre os que dormem?


3.

Vede, eu vos ensino o super-homem!

O super-homem é o sentido da terra. Que a vossa vontade diga: o super-homem seja o sentido da terra!

Eu vos imploro, irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças supraterrenas! São envenenadores, saibam eles ou não.

[…] Uma vez a ofensa a Deus era a maior das ofensas, mas Deus morreu, e com isso morreram também os ofensores. Ofender a terra é agora o que há de mais terrível, e considerar mais altamente as entranhas do inescrutável do que o sentido da terra!


4.

Mas Zaratustra olhou para o povo e se admirou. Então falou assim:

O homem é uma corda, atada entre o animal e o super-homem — uma corda sobre um abismo.

Um perigoso para-lá, um perigoso a-caminho, um perigoso olhar-para-trás, um perigoso estremecer e se deter.

Grande, no homem, é ser ele uma ponte e não um objetivo: o que pode ser amado, no homem, é ser ele uma passagem e um declínio.

Amo aqueles que não sabem viver a não ser como quem declina, pois são os que passam [“estão a caminho do outro lado”, na tradução de Mário da Silva e “pois são os que atravessam”, na tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho].

Amo os grandes desprezadores, porque são os grandes reverenciadores, e flechas de anseio pela outra margem.

Amo aqueles que não buscam primeiramente atrás das estrelas uma razão para declinar e serem sacrificados: mas que se sacrificam à terra, para que um dia a terra venha a ser do super-homem.

Amo aquele que vive para vir a conhecer, e que quer conhecer para que um dia viva o super-homem. E assim quer o seu declínio.

Amo aquele que trabalha e inventa, para construir a casa para o super-homem e lhe preparar terra, bicho e planta: pois assim quer o seu declínio.

[…] Amo aquele que ama a sua virtude: pois virtude é vontade de declínio e uma flecha de anseio.


5.

E assim falou Zaratustra ao povo:

É tempo de o homem fixar sua meta. É tempo de o homem plantar o germe de sua mais alta esperança.

Seu solo ainda é rico o bastante para isso. Mas um dia este solo será pobre e manso, e nenhuma árvore alta poderá nele crescer.

Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem já não lança a flecha de seu anseio por cima do homem, e em que a corda do seu arco desaprendeu de vibrar!

Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante. Eu vos digo: tendes ainda caos dentro de vós.

Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem já não dará à luz nenhuma estrela. Ai de nós! Aproxima-se o tempo do homem mais desprezível, que já não sabe desprezar a si mesmo.

[…] E aqui findou o primeiro discurso de Zaratustra, que é chamado de “prólogo”: pois nesse ponto interromperam-no os gritos e o júbilo da multidão. “Dá-nos esse último homem, ó Zaratustra” — clamavam as pessoas —, “torna-nos como esse último homem! E nós te presenteamos o super-homem!” E toda a gente exultava e estalava a língua. Zaratustra entristeceu-se, porém, e disse ao seu coração:

Eles não me compreendem: não sou a boca para esses ouvidos.

Vivi demasiado tempo nas montanhas, talvez, e demasiado escutei as árvores e os córregos: agora lhes falo como os pastores de cabras.

Plácida está minha alma, e clara como os montes na manhã. Mas eles acham que sou frio, e um zombador de terríveis pilhérias.

E agora eles olham para mim e riem: e, ao rir, também me odeiam. Há gelo no seu riso.

 

6.

Mas então sucedeu algo que fez toda boca silenciar e todo olhar enrijecer. Nesse meio-tempo o equilibrista começara seu trabalho: surgira de uma pequena porta e andava sobre a corda que se achava estendida entre duas torres, acima da praça e do povo. Quando estava no meio de seu caminho, abriu-se novamente a pequena porta e um rapaz de vestes coloridas, semelhante a um palhaço, pulou fora e seguiu o primeiro com passos rápidos. “Adiante, aleijado!”, gritou com voz terrível, “adiante, preguiçoso, muambeiro, cara-pálida! Para eu não te fazer cócegas com meu calcanhar! Que fazes aqui entre as torres? Teu lugar é na torre, devias ser trancafiado, estorvas o caminho de alguém melhor do que tu!” — E a cada palavra lhe chegava mais próximo; porém, quando estava a somente um passo do equilibrista, sucedeu a coisa pavorosa que fez toda boca silenciar e todo olhar enrijecer: — lançou um grito de demônio e saltou sobre aquele que lhe estava no caminho. Mas esse, vendo seu rival assim triunfar, perdeu a cabeça e a corda; desfez-se de sua vara e mais rapidamente do que ela mergulhou na profundeza, como um redemoinho de braços e pernas. A praça e o povo semelhavam o mar quando chega a tempestade: todos corriam e se atropelavam, sobretudo no local onde se precipitava o corpo.


7.

Na verdade, uma bela pescaria teve hoje Zaratustra! Nenhum homem pescou, e sim um cadáver.

Inquietante é a existência humana, e ainda sem sentido algum: um palhaço pode lhe ser uma fatalidade.

Quero ensinar aos homens o sentido do seu ser: o qual é o super-homem, o raio vindo da negra nuvem homem.

Mas ainda me acho longe deles, e o meu sentido não fala aos seus sentidos.


8.

Após dizer isso ao seu coração, Zaratustra levou às costas o cadáver e se pôs a caminho. Ainda não havia dado cem passos quando alguém se aproximou de mansinho e lhe sussurrou algo no ouvido — e vede! era o palhaço da torre. “Vai-te embora desta cidade, ó Zaratustra”, falou ele; “muitos aqui te odeiam. Odeiam-te os bons e os justos, e te chamam de seu inimigo e desprezador; odeiam-te os crentes da verdadeira fé, e te chamam de perigo para a multidão. Tua sorte foi que riram de ti; e, na verdade, falaste à maneira de um palhaço. Tua sorte foi que te juntaste ao cachorro morto; ao te rebaixares assim, te salvaste por hoje. Mas deixa esta cidade — ou amanhã salto sobre ti, um vivo sobre um morto.” Depois de dizer isso, o homem desapareceu; mas Zaratustra continuou pelas ruas escuras.


9.

Longamente dormiu Zaratustra, e não apenas a aurora passou sobre o seu rosto, mas também a manhã. Enfim seus olhos se abriram: admirado, Zaratustra enxergou a floresta e o silêncio, e admirado olhou dentro de si. Então se ergueu depressa, como um navegante que subitamente vê terra, e exultou: pois viu uma nova verdade. E assim falou então ao seu coração:

Uma luz raiou para mim: de companheiros necessito, de vivos — não de mortos e cadáveres, que levo comigo para onde quero ir.

Mas de companheiros vivos necessito, que me sigam porque querem seguir a si mesmos — e para onde quero ir.

Uma luz raiou para mim: que Zaratustra não fale para o povo, mas para companheiros! Zaratustra não deve se tornar pastor e cão de um rebanho!

Para atrair muitos para fora do rebanho — vim para isso. Povo e rebanho se enfurecerão comigo: Zaratustra quer ser chamado de ladrão pelos pastores.

“Pastores” digo eu, mas eles se chamam os bons e justos. “Pastores” digo eu: mas eles se chamam os crentes da verdadeira fé.

Vede os bons e justos! A quem odeiam mais? Àquele que quebra suas tábuas de valores, ao quebrador, infrator: — mas esse é o que cria.

[…] Companheiros é o que busca o criador, não cadáveres, e tampouco rebanhos e crentes. Aqueles que criem juntamente com ele busca o criador, que escrevam novos valores em novas tábuas.

Companheiros é o que busca o criador, e aqueles que colham juntamente com ele: pois tudo nele se acha maduro para a colheita. Mas faltam-lhe as cem foices: então ele arranca as espigas e se aborrece.

Companheiros é o que busca o criador, e aqueles que saibam afiar suas foices. Destruidores serão eles chamados, e desprezadores de bem e mal. Mas são eles os que colhem e que festejam.

Aqueles que também criem busca Zaratustra, que também colham e festejem busca Zaratustra: que tem ele a fazer com rebanhos e pastores!

E tu, meu primeiro companheiro, repousa em paz! Bem te sepultei em tua árvore oca, bem te escondi dos lobos.

Mas me separo de ti, o tempo chegou. Entre duas auroras, uma nova verdade me chegou.

Não deverei ser pastor, nem coveiro. Jamais tornarei a me dirigir ao povo; pela última vez falei com um morto.

Quero juntar-me aos que criam, que colhem, que festejam: eu lhes mostrarei o arco-íris e todos os degraus até o super-homem.


10.

Isso falou Zaratustra ao seu coração, quando o sol se achava no meio-dia: então olhou para o céu, indagador — pois ouvia no alto o grito agudo de um pássaro. E eis que uma águia fazia vastos círculos no ar, e dela pendia uma serpente, não como uma presa, mas como uma amiga: pois estava enrodilhada em seu pescoço.

“Estes são meus animais!”, disse Zaratustra, e alegrou-se com todo o coração.

“O mais orgulhoso animal sob o sol e o prudente animal sob o sol — eles saíram em exploração.

Querem ver se Zaratustra ainda vive. Ainda vivo, em verdade?

Achei mais perigo entre os homens do que entre os animais, caminhos perigosos segue Zaratustra. Que meus animais me conduzam!”