Deus ou a natureza em Spinoza - Aula 1
Deus ou a natureza: a causa livre de todas as coisas
Não tenho dúvida que de todos os que julgam as coisas confusamente e não se habituaram a conhecê-las por suas causas primeiras terão dificuldade em compreender a demonstração da prop. 7, o que ocorre por não fazerem qualquer distinção entre as modificações das substâncias e as próprias substâncias e por não saberem como as coisas são produzidas. Atribuem, assim, às substâncias a mesma origem que observam nas coisas naturais. Aqueles, pois, que ignoram as verdadeiras causas das coisas, confundem tudo e, sem qualquer escrúpulo, inventam que as árvores, tal como os homens, também falam; que os homens provêm também das pedras e não apenas do sêmen; e que qualquer forma pode se transformar em qualquer outra. Igualmente, aqueles que confundem a natureza divina com a humana, facilmente atribuem a Deus afetos humanos, sobretudo à medida que também ignoram de que maneira os afetos são produzidos na mente. Se, entretanto, prestassem atenção à natureza da substância, não teriam a mínima dúvida sobre a verdade da prop. 7. Pelo contrário, essa proposição seria para todos um axioma e seria enumerada entre as noções comuns. Pois, por substância, compreenderiam aquilo que existe em si mesmo e por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conhecimento não tem necessidade do conhecimento de outra coisa. Por modificações, em troca, compreenderiam aquilo que existe em outra coisa e cujo conceito é formado por meio do conceito da coisa na qual existe. […] É necessário, pois reconhecer que a existência de uma substância, assim como a sua essência, é uma verdade eterna. (Ética, 1, escólio 2 da prop. 8, Autêntica Editora, tradução de Tomaz Tadeu)
Para cada coisa, deve-se indicar a causa ou a razão pela qual ela existe ou não existe. Por exemplo, se um triângulo existe, deve-se dar a causa ou a razão pela qual ele existe; se, por outro lado, ele não existe, deve-se também dar a razão ou a causa que impede que ele exista, ou seja, que suprima sua existência. Ora, essa razão ou causa deve estar contida na natureza da coisa ou, então, fora dela. […] Por sua vez, o que faz com que uma substância exista também se segue exclusivamente de sua própria natureza, porque esta última envolve, é óbvio, a existência. Mas a razão pelo qual um círculo – ou um triângulo – existe ou não existe não se segue de sua própria natureza, mas da ordem da natureza corpórea como um todo. Pois é dessa ordem que deve se seguir que, neste momento, esse triângulo ou exista necessariamente ou seja impossível que ele exista. Tudo isso é evidente por si mesmo. Disso se segue que uma coisa existe necessariamente se não houver nenhuma razão ou causa que a impeça de existir. Se, pois, não pode haver nenhuma razão ou causa que impeça que Deus exista ou que suprima a sua existência, deve-se, sem dúvida, concluir que ele existe necessariamente. (Ética, 1, demonstração alternativa da prop. 11, Autêntica Editora, tradução de Tomaz Tadeu)
Há aqueles que inventam que Deus, à semelhança do homem, é constituído de corpo e mente, e que está sujeito a paixões. Mas fica bastante evidente, pelo que já foi demonstrado, o quanto se desviam do verdadeiro conhecimento de Deus. Desconsidero-os, entretanto. Pois todos os que, de alguma maneira, refletiram sobre a natureza divina negam que Deus seja corpóreo, proposição para a qual, além disso, apresentam excelente prova. Pois, se por corpo compreendemos toda quantidade que tenha comprimento, largura e profundidade, e que seja delimitada por alguma figura definida, nada poderia ser mais absurdo do que dizer isso a respeito de Deus, ou seja, de um ente absolutamente infinito. Entretanto, ao mesmo tempo, no esforço por fazer essa demonstração, aduzem outras razões, as quais revelam claramente que excluem por completo a substância corpórea, isto é, extensa, da natureza divina, afirmando que ela foi criada por Deus. Por qual potência divina ela poderia, entretanto, ter sido criada é coisa que ignoram por completo, o que mostra claramente que não compreendem o que eles mesmos dizem. Pelo menos no que diz me diz respeito, demonstrei bastante claramente, ao que me parece, que nenhuma substância pode ser produzida ou criada por outra coisa. Além disso, demonstramos, na prop. 14, que, além de Deus, não pode existir nem ser concebida nenhuma substância. Disso concluímos que a substância extensa é um dos infinitos atributos de Deus. […] Isso será bastante evidente para todos os que souberem distinguir a imaginação do intelecto, sobretudo se considerarem também o fato de que a matéria é, em todo lugar, a mesma, e que nela não se distinguem partes, a não ser enquanto a concebemos como matéria afetada de diferentes maneiras, motivo pelo qual suas partes se distinguem apenas modalmente e não realmente. Por exemplo, concebemos que a água, enquanto água, se divida, e que suas partes se separem umas das outras, mas não enquanto substância corpórea, pois, enquanto tal, ela não se separa nem se divide. Além disso, a água, enquanto água, é gerada e se corrompe, mas enquanto substância não é gerada nem se corrompe. […] Tudo, afirmo, existe em Deus, e é exclusivamente pelas leis de sua natureza infinita que ocorre tudo o que ocorre, seguindo-se tudo (como logo mostrarei) da necessidade de sua essência. (Ética, 1, escólio da prop. 15, Autêntica Editora, tradução de Tomaz Tadeu)
Como certas coisas devem ter sido produzidas por Deus imediatamente, a saber, aquelas que se seguem necessariamente de sua natureza absoluta e, pela mediação dessas primeiras, outras que, entretanto, não podem existir nem ser concebidas sem Deus, segue-se que: 1. Das coisas produzidas imediatamente por ele, Deus é, absolutamente, causa próxima, e não apenas em seu gênero, como dizem. Pois os efeitos de Deus não podem existir nem ser concebidos sem sua causa. 2. Não se pode propriamente dizer que Deus é causa remota das coisas singulares, a não ser, talvez, para as distinguir daquelas coisas que ele produziu imediatamente, ou melhor, das que se seguem de sua natureza absoluta. Pois por causa remota compreendemos aquela causa que não está, de nenhuma maneira, coligada a seu efeito. Mas tudo o que existe, existe em Deus e dele depende, de maneira tal que sem ele não pode existir nem ser concebido. (Ética, 1, escólio da prop. 28, Autêntica Editora, tradução de Tomaz Tadeu)