Deleuze & Guattari: Mil Platôs - Aula 1
Introdução: Rizoma
1º e 2º- Princípios de conexão e de heterogeneidade: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem. A árvore linguística à maneira de Chomsky começa ainda num ponto S e procede por dicotomia. […] A gramaticalidade de Chomsky, o símbolo categorial S que domina todas as frases, é antes de tudo um marcador de poder antes de ser um marcador sintático: você constituirá frases gramaticalmente corretas, você dividirá cada enunciado em sintagma nominal e sintagma verbal (primeira dicotomia...). […] Não existe uma língua-mãe, mas tomada de poder por uma língua dominante dentro de uma multiplicidade política. A língua se estabiliza em torno de uma paróquia, de um bispado, de uma capital. Ela faz bulbo. Ela evolui por hastes e fluxos subterrâneos, ao longo de vales fluviais ou de linhas de estradas de ferro, espalha-se como manchas de óleo. (Mil Platôs, vol. 1, p. 15 e 16, Editora 34, 1ª edição, 1995)
3º - Princípio de multiplicidade: é somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo. As multiplicidades são rizomáticas e denunciam as pseudomultiplicidades arborescentes. […] A unidade sempre opera no seio de uma dimensão vazia suplementar àquela do sistema considerado (sobrecodificação). Mas acontece, justamente, que um rizoma, ou multiplicidade, não se deixa sobrecodificar, nem jamais dispõe de dimensão suplementar ao número de suas linhas, quer dizer, à multiplicidade de números ligados a estas linhas. Todas as multiplicidades são planas, uma vez que elas preenchem, ocupam todas as suas dimensões: falar-se-á então de um plano de consistência das multiplicidades, se bem que este "plano" seja de dimensões crescentes segundo o número de conexões que se estabelecem nele. As multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem às outras. O plano de consistência (grade) é o fora de todas as multiplicidades. (Mil Platôs, vol. 1, p. 16 e 17, Editora 34, 1ª edição, 1995)
4° - Princípio de ruptura a-significante: contra os cortes demasiado significantes que separam as estruturas, ou que atravessam uma estrutura. […] A vespa e a orquídea fazem rizoma em sua heterogeneidade. [...] Não há imitação nem semelhança, mas explosão de duas séries heterogêneas na linha de fuga composta de um rizoma comum que não pode mais ser atribuído, nem submetido ao que quer que seja de significante. Rémy Chauvin diz muito bem: "Evolução a-paralela de dois seres que não têm absolutamente nada a ver um com o outro". […] É a mesma coisa quanto ao livro e ao mundo: o livro não é a imagem do mundo segundo uma crença enraizada. Ele faz rizoma com o mundo, há evolução a-paralela do livro e do mundo, o livro assegura a desterritorialização do mundo, mas o mundo opera uma reterritorialização do livro, que se desterritorializa por sua vez em si mesmo no mundo (se ele é disto capaz e se ele pode). O mimetismo é um conceito muito ruim, dependente de uma lógica binária, para fenômenos de natureza inteiramente diferente. O crocodilo não reproduz um tronco de árvore assim como o camaleão não reproduz as cores de sua vizinhança. A Pantera Cor-de-rosa nada imita, nada reproduz; ela pinta o mundo com sua cor, rosa sobre rosa, é o seu devir-mundo, de forma a tornar-se ela mesma imperceptível, ela mesma a-significante, fazendo sua ruptura, sua linha de fuga, levando até o fim sua "evolução a-paralela". (Mil Platôs, vol. 1, p. 18 a 20, Editora 34, 1ª edição, 1995)
5º e 6º - Princípio de cartografia e de decalcomania: um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo. [...] Toda lógica da árvore é uma lógica do decalque e da reprodução. Tanto na Linguística quanto na Psicanálise, ela tem como objeto um inconsciente ele mesmo representante, cristalizado em complexos codificados, repartido sobre um eixo genético ou distribuído numa estrutura sintagmática. Ela tem como finalidade a descrição de um estado de fato, o reequilíbrio de correlações intersubjetivas, ou a exploração de um inconsciente já dado camuflado, nos recantos obscuros da memória e da linguagem. [...] Diferente é o rizoma, mapa e não decalque. Fazer o mapa, não o decalque. A orquídea não reproduz o decalque da vespa, ela compõe um mapa com a vespa no seio de um rizoma. Se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real. O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói. Ele contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos, para sua abertura máxima sobre um plano de consistência. Ele faz parte do rizoma. […] Entretanto será que nós não restauramos um simples dualismo opondo os mapas aos decalques, como um bom e um mau lado? Não é próprio do mapa poder ser decalcado? [...] Por isto é tão importante tentar a outra operação, inversa mas não simétrica. Religar os decalques ao mapa, relacionar as raízes ou as árvores a um rizoma. […] O que conta é que a árvore-raiz e o rizoma-canal não se opõem como dois modelos: um age como modelo e como decalque transcendentes, mesmo que engendre suas próprias fugas; o outro age como processo imanente que reverte o modelo e esboça um mapa, mesmo que constitua suas próprias hierarquias, e inclusive ele suscite um canal despótico. [...] Trata-se do modelo que não para de se erigir e de se entranhar, e do processo que não para de se alongar, de romper-se e de retomar. Nem outro nem novo dualismo. […] São os decalques que é preciso referir aos mapas e não o inverso. (Mil Platôs, vol. 1, p. 21 a 33, Editora 34, 1ª edição, 1995)
Um platô está sempre no meio, nem início nem fim. Um rizoma é feito de platôs. Gregory Bateson serve-se da palavra "platô" para designar algo muito especial: uma região contínua de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e que se desenvolve evitando toda orientação sobre um ponto culminante ou em direção a uma finalidade exterior. Bateson cita como exemplo a cultura balinense, onde jogos sexuais mãe-filho, ou bem querelas entre homens, passam por essa estranha estabilização intensiva. "Um tipo de platô contínuo de intensidade substitui o orgasmo", a guerra ou um ponto culminante. É um traço deplorável do espírito ocidental referir as expressões e as ações a fins exteriores ou transcendentes em lugar de considerá-los num plano de imanência segundo seu valor em si. Por exemplo, uma vez que um livro é feito de capítulos, ele possui seus pontos culminantes, seus pontos de conclusão. Contrariamente, o que acontece a um livro feito de "platôs" que se comunicam uns com os outros através de microfendas, como num cérebro? Chamamos "platô" toda multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma. Escrevemos este livro como um rizoma. Compusemo-lo com platôs. Demos a ele uma forma circular, mas isto foi feito para rir. Cada manhã levantávamos e cada um de nós se perguntava que platôs ele ia pegar, escrevendo cinco linhas aqui, dez linhas alhures. Tivemos experiências alucinatórias, vimos linhas, como fileiras de formiguinhas, abandonar um platô para ir a um outro. Fizemos círculos de convergência. Cada platô pode ser lido em qualquer posição e posto em relação com qualquer outro. […] O fora não tem imagem, nem significação, nem subjetividade. O livro, agenciamento com o fora contra o livro-imagem do mundo. Um livro rizoma, e não mais dicotômico, pivotante ou fasciculado. Nunca fazer raiz, nem plantar, se bem que seja difícil não recair nos velhos procedimentos. [...] Por que é tão difícil? É desde logo uma questão de semiótica perceptiva. Não é fácil perceber as coisas pelo meio, e não de cima para baixo, da esquerda para a direita ou inversamente: tentem e verão que tudo muda. Não é fácil ver a erva nas coisas e nas palavras (Nietzsche dizia da mesma maneira que um aforismo devia ser "ruminado", e jamais um platô é separável das vacas que o povoam e que são também as nuvens do céu). (Mil Platôs, vol. 1, p. 33 a 35, Editora 34, 1ª edição, 1995)