Audioaula "Deleuze & Guattari - A máquina capitalista civilizada", em 26/08/16

 

O anti-Édipo, Editora 34, 1ª edição, 2010, tradução de Luiz Orlandi.


Em suma, a máquina capitalista começa quando o capital deixa de ser um capital de aliança para devir filiativo. O capital devém um capital filiativo quando o dinheiro engendra dinheiro, ou o valor uma mais-valia, “valor progressivo, dinheiro sempre germinando, crescente e, como tal, capital... O valor se apresenta subitamente como uma substância motriz de si própria, e para a qual a mercadoria e a moeda são tão somente puras formas. Distingue em si o seu valor primitivo e a sua mais-valia, tal como Deus distingue na sua pessoa o pai e o filho, e que ambos fazem um só e são da mesma idade, porque é só quando há uma mais-valia de dez libras que as primeiras cem libras adiantadas se transformam em capital”. É somente nestas condições que o capital devém corpo pleno, o novo socius ou a quase-causa que se apropria de todas as forças produtivas. [...] O capital industrial apresenta assim uma nova-nova filiação, constitutiva da máquina capitalista, em relação à qual o capital comercial e o capital financeiro vão agora tomar a forma de uma nova-nova aliança, assumindo funções específicas. (p. 302 e 303)


A escravidão generalizada do Estado despótico implicava pelo menos senhores, e um aparelho de antiprodução distinto da esfera da produção. Mas o campo de imanência burguês, tal como é definido pela conjunção dos fluxos descodificados, pela negação de toda transcendência ou limite exterior, pela efusão da antiprodução na própria produção, tudo isso instaura uma escravidão incomparável, uma sujeição sem precedente: já não há senhores; agora, só escravos comandam escravos; já não há necessidade de pôr carga no animal de fora, pois ele próprio se encarrega dela. Não que o homem seja o escravo da máquina técnica; mas, escravo da máquina social, o burguês dá o exemplo, absorve a mais-valia para fins que, em seu conjunto, nada têm a ver com seu gozo: mais escravo do que o último dos escravos, primeiro servidor desta máquina esfomeada, besta de reprodução do capital, interiorização da dívida infinita. Eu também sou escravo, são estas as novas palavras do senhor. “O capitalista só é respeitável como capital tornado homem. Nesse papel, ele é, como o entesourador, dominado por sua paixão cega pela riqueza abstrata, pelo valor. Mas o que parece ser uma mania individual em um, é no outro o efeito do mecanismo social do qual ele é uma engrenagem”. [...] Em suma, a oposição teórica não é entre duas classes. [...] A oposição está entre a classe e os fora-da-classe; entre os servidores da máquina e os que a fazem ir pelos ares ou explodem as engrenagens; entre o regime da máquina social e o das máquinas desejantes; entre os limites interiores relativos e o limite exterior absoluto. Ou, se se quiser: entre os capitalistas e os esquizos, na sua intimidade fundamental no nível da descodificação e na sua hostilidade fundamental no nível da axiomática (donde a semelhança, no retrato que os socialistas do século XIX fazem do proletariado, entre este e um perfeito esquizo). (p. 336 a 338)


Se é verdade que a função do Estado moderno é a regulação de fluxos descodificados, desterritorializados, um dos principais aspectos desta função consiste em reterritorializar, de modo a impedir que fluxos descodificados fujam por todos os cantos da axiomática social. [...] Tira-se disso uma consequência importante. É que a axiomática social das sociedades modernas está contida entre dois polos, e não para de oscilar de um polo a outro. Tais sociedades, nascidas da descodificação e da desterritorialização, sobre as ruínas da máquina despótica, estão contidas entre o Urstaat, que bem gostariam de ressuscitar como unidade sobrecodificante e reterritorializante, e os fluxos desencadeados que as levam em direção a um limiar absoluto. [...] Oscila-se entre as sobrecargas paranoicas reacionárias e as cargas subterrâneas, esquizofrênicas e revolucionárias. [...] Por um lado, o Estado moderno forma um verdadeiro corte para frente em relação ao Estado despótico, graças à efetuação de um devir-imanente, à sua generalizada descodificação de fluxos e à sua axiomática que vem substituir os códigos e as sobrecodificações. Mas, por outro lado, há e houve sempre um só Estado, o Urstaat, a formação despótica asiática que, para trás, constitui o único corte para toda a história, uma vez que a própria axiomática social moderna só pode funcionar ressuscitanto-a como um dos polos entre os quais se exerce o seu próprio corte. Democracia, fascismo ou socialismo — qual deles não é assombrado pelo Urstaat como modelo inigualável? (p. 342 a 346)


Distinguimos três grandes máquinas sociais, as correspondentes aos selvagens, aos bárbaros e aos civilizados. A primeira é a máquina territorial subjacente, que consiste em codificar os fluxos sobre o corpo pleno da terra. A segunda é a máquina imperial transcendente que consiste em sobrecodificar os fluxos sobre o corpo pleno do déspota e do seu aparelho, o Urstaat: ela opera o primeiro grande movimento de desterritorialização, mas porque acrescenta sua eminente unidade às comunidades territoriais que ela conserva, reunindo-as, sobrecodificando-as, apropriando-se do sobretrabalho. A terceira é a máquina moderna imanente, que consiste em descodificar os fluxos sobre o corpo pleno do capital-dinheiro: ela realizou a imanência, tornou concreto o abstrato, naturalizou o artificial, substituindo os códigos territoriais e a sobrecodificação despótica por uma axiomática dos fluxos descodificados e por uma regulação destes fluxos; ela opera o segundo grande movimento de desterritorialização, mas, desta vez, porque nada deixa subsistir dos códigos e sobrecódigos. [...] O historiador diz: não, o Estado moderno, com sua burocracia e tecnocracia, não se assemelha ao estado despótico antigo. Isto é evidente, pois, num caso, trata-se de reterritorializar fluxos descodificados, ao passo que, no outro caso, trata-se de sobrecodificar fluxos territoriais. O paradoxo está em que o capitalismo se serve do Urstaat para fazer operar suas reterritorializações. [...] Desterritorialização, axiomática e reterritorialização, são estes os três elementos de superfície da representação de desejo no socius moderno. (p. 346 a 348)