Audioaula "Deleuze & Guattari - A máquina territorial primitiva", em 12/08/16


O anti-Édipo, Editora 34, 1ª edição, 2010, tradução de Luiz Orlandi.


A máquina territorial primitiva codifica os fluxos, investe os órgãos, marca os corpos. Até que ponto circular, trocar, é uma atividade secundária em relação a esta tarefa que resume todas as outras: marcar os corpos, que são da terra. A essência do socius registrador, inscritor, enquanto atribui a si próprio as forças produtivas e distribui os agentes de produção, consiste nisto: tatuar, excisar, incisar, recortar, escarificar, mutilar, cercar, iniciar. Nietzsche definia “a moralidade dos costumes como o verdadeiro trabalho do homem sobre si mesmo durante o mais longo período da espécie humana, todo seu trabalho pré-histórico”: um sistema de avaliações que tem força de direito em relação ao diversos membros e partes do corpo. [...] É que se trata de um ato de fundação, pelo qual o homem deixa de ser um organismo biológico e devém um corpo pleno, uma terra. [...] Sistema da crueldade, terrível alfabeto, esta organização que traça signos no próprio corpo. [...] A crueldade nada tem a ver com uma violência qualquer ou com uma violência natural, com que se explicaria a história do homem; ela é o movimento da cultura que se opera nos corpos e neles se inscreve, cultivando-os. É isto que significa crueldade. [...] Faz dos homens e dos seus órgãos peças e engrenagens da máquina social. (p. 191 a 193)


Já vimos que o regime da dívida decorria diretamente das exigências desta inscrição selvagem. Porque a dívida é a unidade de aliança. [...] É a aliança que codifica os fluxos do desejo e que, pela dívida, dá ao homem uma memória de palavras. [...] É a dívida que compõe as alianças com as filiações tornadas extensas, para formar e forjar um sistema em extensão (representação) sobre o recalcamento das intensidades noturnas. A aliança-dívida corresponde ao que Nietzsche descrevia como o trabalho pré-histórico da humanidade: servir-se da mais cruel mnemotecnia para impor na própria carne uma memória de palavras sobre a base do recalcamento da velha memória biocósmica. Eis por que é tão importante ver na dívida uma consequência direta da inscrição primitiva. (p. 245)


Como funciona esta máquina? É certo que ela funciona: a voz é como uma voz de aliança, à qual, do lado da filiação extensa, se coordena uma grafia sem semelhança com essa voz. Sobre o corpo da jovem é colocada a cabaça da excisão. Fornecida pela linhagem do marido, é a cabaça que serve de condutor à voz de aliança; mas o grafismo deve ser traçado por um membro do clã da jovem. A articulação dos dois elementos se faz no próprio corpo, constituindo-se assim o signo, que não é semelhança ou imitação, nem efeito de significante, mas posição e produção de desejo. [...] Nos rituais de aflição, o paciente não fala, mas recebe a palavra. Ele não age, é passivo sob a ação gráfica, recebe a marca do signo. E o que é a sua dor senão um prazer para o olho que olha, o olho coletivo ou divino que não está animado de ideia alguma de vingança, mas apenas apto para apreender a relação sutil entre o signo gravado no corpo e a voz que sai de um rosto — entre a marca e a máscara. Entre estes dois elementos do código, a dor é como que a mais-valia que o olho extrai, apreendendo o efeito da palavra ativa sobre o corpo, mas também a reação do corpo enquanto é agido. É precisamente a isto que se deve chamar sistema da dívida ou representação territorial: voz que fala ou salmodia, signo marcado em plena carne, olho que tira prazer da dor — são os três lados de um triângulo selvagem que forma um território de ressonância e de retenção, teatro da crueldade que implica a tríplice independência da voz articulada, da mão gráfica e do olho apreciador. [...] Triângulo mágico. Neste sistema tudo é ativo, agido ou reagido, a ação da voz de aliança, a paixão do corpo de filiação, a reação do olho apreciando a declinação dos dois. Escolher a pedra que fará do jovem Guayaki um homem, com suficiente sofrimento e dor, cortando-lhe ao longo das costas: “Ela deve ter um lado bem afiado” (diz Clastres num texto admirável), “mas não como a lasca de bambu que corta muito facilmente. Escolher a pedra adequada exige, pois, um golpe de vista. Todo o aparelho desta nova cerimônia se reduz a isto: um calhau... A pele lavrada, terra escarificada, uma só e mesma marca)”. (p. 250 e 251)


As famílias selvagens formam uma práxis, uma política, uma estratégia de alianças e de filiações; formalmente, elas são os elementos motores da reprodução social; elas nada têm a ver com um microcosmo expressivo; o pai, a mãe, a irmã sempre funcionam aí como outra coisa além de pai, mãe ou irmã. E mais do que o pai, a mãe etc., há o aliado, que constitui a realidade concreta ativa e torna as relações entre as famílias coextensivas ao campo social. (p. 221)