Audioaula "Deleuze & Guattari - Estado e subjetividade capitalística", em 03/05/16

 

Mil Platôs, vol. 5, Editora 34, 1ª edição, 1997, tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa


Há no capitalismo uma tendência de adicionar perpetuamente axiomas. No fim da guerra de 1914-18, a influência conjugada da crise mundial e da revolução russa forçaram o capitalismo a multiplicar os axiomas, a inventar novos, no que concernia à classe trabalhadora, ao emprego, à organização sindical, às instituições sociais, ao papel do Estado, ao mercado externo e ao mercado interno. A economia de Keynes e o New Deal foram laboratórios de axiomas. Exemplos de novas criações de axiomas depois da Segunda Guerra Mundial: o plano Marshall, as formas de ajuda e de empréstimo, as transformações do sistema monetário. Não é somente em período de expansão ou de retomada que os axiomas se multiplicam. O que faz variar a axiomática, em relação aos Estados, é a distinção e a relação entre mercado externo e mercado interno. Há notadamente multiplicação de axiomas quando se organiza um mercado interno integrado que concorre com as exigências do mercado externo. Axiomas para os jovens, para os velhos, para as mulheres, etc. Poder-se-ia definir um pólo de Estado muito geral, "social-democracia", por essa tendência à adjunção, à invenção de axiomas, em relação com os domínios de investimento e de fontes de lucro: a questão não é a da liberdade ou da coerção, nem do centralismo ou da descentralização, mas da maneira que se domina os fluxos. Aqui, eles são dominados por multiplicação dos axiomas diretores. A tendência inversa não é menor no capitalismo: tendência a retirar, a subtrair axiomas. Acomoda-se a um número muito pequeno de axiomas que regulam os fluxos dominantes, sendo que os outros fluxos recebem um estatuto derivado, de conseqüência (fixado pelos "teoremas" que decorrem dos axiomas), ou são deixados num estado selvagem, que não exclui a intervenção brutal do poder de Estado, ao contrário até. É o pólo de Estado "totalitarismo" que encarna essa tendência a restringir o número de axiomas, e que opera por promoção exclusiva do setor externo, apelo aos capitais estrangeiros, desenvolvimento de uma indústria voltada para a exportação de matérias brutas ou alimentares, ruína do mercado interno. O Estado totalitário não é um máximo de Estado, mas antes, segundo a fórmula de Virilio, o Estado mínimo do anarco-capitalismo (cf. Chili). No limite, os únicos axiomas mantidos são o equilíbrio do setor externo, o nível das reservas e a taxa de inflação; "a população não é mais um dado, ela se tornou uma conseqüência"; quanto às evoluções selvagens, elas aparecem entre outras nas variações do emprego, nos fenômenos de êxodo rural, de urbanização-favelas, etc. (p. 163 e 164)



Micropolítica: cartografias do desejo, Editora Vozes, 7ª edição revisitada, 2005


Tudo o que é produzido pela subjetivação capitalista – tudo o que nos chega pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam – não é apenas uma questão de ideia ou de significações por meio de enunciados significantes. Tampouco se reduz a modelos de identidade ou a identificações com pólos maternos e paternos. Trata-se de sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo. As sociedades “arcaicas” que ainda não incorporaram o processo capitalístico, as crianças ainda não integradas ao sistema, ou as pessoas que estão nos hospitais psiquiátricos e que não conseguem (ou não querem) entrar no sistema de significação dominante, têm uma percepção do mundo inteiramente diferente da que se costuma ter da perspectiva dos esquemas dominantes. Isso não quer dizer que a natureza de sua percepção dos valores e das relações sociais seja caótica. Correspondem a outros modos de representação do mundo, sem dúvida muito importantes para as pessoas que deles se servem para poder viver, mas não só para elas, sua importância poderá se estender a outros setores da vida social, numa sociedade de outro tipo. (p. 35)


A produção de subjetividade encontra-se, e com um peso cada vez maior, no seio daquilo que Marx chama de infra-estrutura produtiva. Isso é muito fácil de verificar. Quando uma potência como os Estados Unidos quer implantar suas possibilidades de expansão econômica num país do assim chamado Terceiro Mundo, ela começa, antes de mais nada, a trabalhar os processos de subjetivação. Sem um trabalho de formação prévia das forças produtivas e das forças de consumo, sem um trabalho de todos os meios de semiotização econômica, comercial, industrial, as realidades sociais locais não poderão ser controladas. (p. 36)


A culpabilização é uma função da subjetividade capitalística. A raiz das tecnologias capitalísticas de culpabilização consiste em propor sempre uma imagem de referência a partir da qual colocam-se questões tais como: “quem é você?”, “você que ousa ter uma opinião, você fala em nome de quê?”, “o que você vale na escala de valores reconhecidos enquanto tais na sociedade?”, “a que corresponde sua fala?”, “que etiqueta poderia classificar você?” E somos obrigados a assumir a singularidade de nossa própria posição com o máximo de consistência. Só que isso é frequentemente impossível de fazermos sozinhos, pois uma posição implica sempre um agenciamento coletivo. No entanto, à menor vacilação diante dessa exigência de referência, acaba-se caindo automaticamente numa espécie de buraco, que faz com que a gente comece a se indagar: “afinal de contas quem sou eu? Será que sou uma merda?” É como se nosso próprio direito de existência desabasse. E aí se pensa que a melhor coisa que se tem a fazer é calar-se e interiorizar esses valores. Mas quem é que diz isso? Talvez não seja necessariamente o professor, ou o mestre explícito exterior, mas sim algo de nós mesmos, em nós mesmos e que nós mesmos reproduzimos. Instâncias de superego e instâncias de inibição. (p. 49)


A segregação é uma função da economia subjetiva capitalística diretamente vinculada à culpabilização. Ambas pressupõem a identificação de qualquer processo com quadros de referência imaginários, o que propicia toda espécie de manipulação. É como se para se manter a ordem social tivesse que instaurar, ainda que de maneira mais artificial possível, sistemas de hierarquia inconsciente, sistemas de escalas de valor e sistemas de disciplinarização. Tais sistemas dão uma consistência subjetiva às elites (ou às pretensas elites) e abrem todo um campo de valorização social, onde os diferentes indivíduos e camadas sociais terão que se situar. Essa valorização capitalística se inscreve essencialmente não só contra os sistemas de valor de uso, como Marx descreveu, mas também contra todos os modos de valorização do desejo, todos os modos de valorização das singularidades. (p. 50)


Outra função da economia subjetiva capitalística, talvez a mais importante de todas, é a da infantilização. Pensam por nós, organizam por nós a produção e a vida social. Além disso, consideram que tudo o que tem a ver com coisas extraordinárias – como o fato de falar e viver, o fato de ter que envelhecer, de ter que morrer – não deve perturbar nossa harmonia no local de trabalho e nos postos de controle social que ocupamos, a começar pelo controle social que exercemos sobre nós mesmos. (p. 50) 


A infantilização – como a das mulheres, dos loucos, de certos setores sociais ou de qualquer comportamento dissidente – consiste em que tudo o que se faz, se pensa ou se possa vir a fazer ou pensar seja mediado pelo Estado. Qualquer tipo de troca econômica, qualquer tipo de produção cultural ou social tende a passar pela mediação do Estado. Essa relação de dependência do Estado é um dos elementos essenciais da subjetividade capitalística (p. 50)