Audioaula "Bergson - Qual é o objeto da arte?", em 23/05/24

 

Qual é o objeto da arte? Se a realidade atingisse diretamente nossos sentidos e nossa consciência, se pudéssemos entrar em comunicação imediata com as coisas e conosco mesmos, acredito que a arte seria inútil, ou antes que seríamos todos artistas, pois então nossa alma vibraria continuamente em uníssono com a natureza. […] Ouviríamos cantar no fundo de nossa alma, como uma música, por vezes alegre, amiúde plangente, sempre original, a ininterrupta melodia de nossa vida interior. Tudo isso está ao nosso redor, está dentro de nós e, no entanto, nada disso é por nós percebido distintamente. Entre a natureza e nós, que digo? Entre nós e nossa própria consciência, um véu se interpõe, véu espesso para a maioria dos homens, véu leve, quase transparente, para o artista e o poeta. Que fada teceu esse véu? Isto foi feito por malícia ou por amizade? Era preciso viver, e a vida exige que apreendamos as coisas na relação que elas estabelecem com as nossas necessidades. Viver consiste em agir. Viver é aceitar dos objetos apenas sua impressão útil para a ela responder por reações apropriadas: as demais impressões devem obscurecer-se ou chegar a nós apenas confusamente. […] Meus sentidos e minha consciência, portanto, me oferecem da realidade apenas uma simplificação prática. Na visão que me dão das coisas e de mim mesmo as diferenças inúteis ao homem são apagadas; as semelhanças úteis ao homem são acentuadas; caminhos são traçados para mim de antemão, nos quais minha ação se engajará. Caminhos que a humanidade inteira percorreu antes de mim. As coisas foram classificadas com vistas ao proveito que delas eu poderia tirar. E é essa classificação que percebo, muito mais do que a cor e a forma das coisas. A esse respeito, sem dúvida o homem já se encontra em situação bastante superior à do animal. É muito pouco provável que os olhos do lobo distingam entre o cabrito e o carneiro; para o lobo, trata-se de duas presas idênticas, igualmente fáceis de caçar, igualmente boas para devorar. Nós fazemos uma diferença entre a cabra e a ovelha; mas distinguimos uma cabra de outra, uma ovelha de outra? A individualidade dos seres e das coisas nos escapa todas as vezes em que não é materialmente útil percebê-la. E mesmo ali onde a apreendemos (por exemplo quando distinguimos um homem de outro homem), não é a individualidade propriamente dita que nosso olhar capta, ou seja, uma certa harmonia totalmente original de formas e cores, mas apenas um ou dois traços que facilitarão o reconhecimento prático. (O riso, p. 102 a 104, Edipro)


Enfim, para resumir, não vemos as coisas mesmas; limitamo-nos, na maioria das vezes, a ler as etiquetas coladas sobre elas. Essa tendência, que tem origem na necessidade, acentuou-se ainda mais sob a influência da linguagem. Pois as palavras (com exceção dos nomes próprios) designam gêneros. A palavra, que só destaca da coisa sua função mais comum e seu aspecto mais banal, insinua-se entre ela e nós e mascararia sua forma aos nossos olhos se essa forma já não tivesse sido dissimulada pelas necessidades mesmas que criaram as palavras. E não se trata apenas dos objetos exteriores; trata-se também de nossos próprios estados de alma que se ocultam para nós no que eles têm de íntimo, de pessoal, de originalmente vivido. Quando experimentamos o amor ou o ódio, quando nos sentimos alegres ou tristes, podemos dizer que o que chega à nossa consciência é nosso sentimento mesmo, com todas as mil nuances fugidias e mil ressonâncias profundas que fazem dele algo de absolutamente nosso? Todos seríamos então romancistas, poetas, músicos. Mas na maior parte do tempo percebemos de nosso estado de alma apenas seu desenvolvimento exterior. Apreendemos de nossos sentimentos somente seu aspecto impessoal, aquele que a linguagem destacou definitivamente, porque é quase o mesmo, nas mesmas condições, para todos os homens. De modo que, até mesmo em relação ao próprio indivíduo que somos, nossa individualidade nos escapa. É entre generalidades e signos que nos movemos, como em um campo fechado, no qual nossa força se mede utilmente com outras forças; e, fascinados pela ação, atraídos por ela, vivemos, com vistas ao nosso maior proveito, no terreno por ela escolhido, em uma zona intermediária entre as coisas e nós, exterior às coisas, exterior também a nós mesmos. Mas, de quando em quando, por distração, a natureza suscita almas mais desprendidas da vida. Não falo desse desprendimento desejado, raciocinado, sistemático, que é obra da reflexão e da filosofia. Falo de um desprendimento natural, inato à estrutura dos sentidos e da consciência, e que se manifesta imediatamente em um modo algo virginal de ver, de ouvir e de pensar. Se esse desprendimento fosse completo, se a alma não mais aderisse à ação por nenhuma de suas percepções, ela seria a alma de um artista como o mundo jamais viu. Seria excelente em todas as artes ao mesmo tempo, ou, sobretudo, fundiria a todas  em uma só. Perceberia todas as coisas em sua pureza original, tanto as formas, as cores e os sons do mundo material quanto os mais sutis movimentos da vida interior. Mas é pedir muito à natureza. Mesmo para aqueles dentre nós que ela fez artistas, foi acidentalmente, e apenas parcialmente, que levantou o véu. Somente em uma direção corresponde ao que chamamos um sentido, comumente é por apenas um desses sentidos que o artista se volta para a arte. Donde, em sua origem, a diversidade da arte. Donde, também, a especialidade das predisposições. Aquele se prenderá às cores e às formas, e como ele ama a cor pela cor, a forma pela forma, como ele as percebe por elas e não por ele, é a vida interior das coisas que ele verá transparecer por suas formas e suas cores. Ele a fará entrar pouco a pouco em nossa percepção de início desconcertada. Por um momento, ao menos, ele nos desprenderá dos prejuízos da forma e da cor que se interpõem entre nós e a realidade. E revelará a mais alta ambição da arte, a de revelar a natureza. Outros se voltarão sobre si mesmos. Sob as mil ações nascentes que se desenham ao redor de um sentimento, por trás da palavra banal e social que expressa e recobre um estado de alma individual, é o sentimento, o estado de alma simples e puro que irão procurar. E para nos induzir a tentar o mesmo esforço sobre nós mesmos, se empenharão em nos fazer ver algo do que eles viram. Por arranjos rítmicos de palavras, que deste modo passa a se organizar e se animar por uma vida original, nos dizem ou, sobretudo, nos sugerem coisas que a linguagem não foi feita para expressar. Outros escavarão ainda mais profundamente. Sob essas alegrias e essas tristezas, que a rigor podem se traduzir em palavras, apreenderão algo que nada mais tem em comum com a palavra, certos ritmos de vida e de respiração que são mais interiores ao homem que seus sentimentos mais interiores, a lei viva, variável em cada pessoa, de sua depressão e de sua exaltação, de seus arrependimentos e de suas esperanças. Ao libertar, ao acentuar essa música, eles a imporão à nossa atenção; farão com que involuntariamente nos insiramos nela, como espectadores de passagem que começam a dançar. E também por isso nos farão tocar, no fundo de nós mesmos, algo que esperava o momento para vibrar. - Sendo assim, quer seja a pintura, escultura, poesia ou música, a arte tem como único objetivo descartar os símbolos praticamente úteis, as generalidades acentuadas convencional e socialmente, enfim, tudo o que mascara a realidade com vistas a nos colocar face à própria realidade. […] Certamente a arte nada mais é do que uma visão mais direta da realidade. (O riso, p. 104 a 106, Edipro)