Audioaula "Bergson - Hábito e memória", em 11/03/16

 

Matéria e memória, Martins Fontes Editora, 2ª edição, 1999


[...] poderíamos representar-nos duas memórias teoricamente independentes. A primeira registraria, sob forma de imagens-lembranças, todos os acontecimentos de nossa vida cotidiana à medida que se desenrolam; ela não negligenciaria nenhum detalhe; atribuiria a cada fato, a cada gesto, seu lugar e sua data. Sem segunda intenção de utilidade ou de aplicação prática, armazenaria o passado pelo mero efeito de uma necessidade natural. Por ela se tornaria possível o reconhecimento inteligente, ou melhor, intelectual, de uma percepção já experimentada; nela nos refugiaríamos todas as vezes que remontamos, para buscar aí uma certa imagem, a encosta de nossa vida passada. Mas toda percepção prolonga-se em ação nascente; e, à medida que as imagens, uma vez percebidas, se fixam e se alinham nessa memória, os movimentos que as continuam modificam o organismo, criam no corpo disposições novas para agir. Assim se forma uma experiência de uma ordem bem diferente e que se deposita no corpo, uma série de mecanismos inteiramente montados, com reações cada vez mais numerosas e variadas às excitações exteriores, com réplicas prontas a um número incessantemente maior de interpelações possíveis. Tomamos consciência desses mecanismos no momento em que eles entram em jogo, e essa consciência de todo um passado de esforços armazenado no presente é ainda uma memória, mas uma memória profundamente diferente da primeira, sempre voltada para a ação, assentada no presente e considerando apenas o futuro. [...] Dessas duas memórias, das quais uma imagina e a outra repete, a segunda pode substituir a primeira e frequentemente até dar a ilusão dela. Quando o cão acolhe seu dono com festa e latidos alegres, ele o reconhece, sem dúvida nenhuma; mas esse reconhecimento implica a evocação de uma imagem passada e a reaproximação dessa imagem à percepção presente? Não consistirá antes na consciência que toma o animal de uma certa atitude especial adotada por seu corpo, atitude que suas relações familiares com seu dono foram formando pouco a pouco, e que a simples percepção do dono provoca agora nele mecanicamente? Não vamos tão longe! No próprio animal, vagas imagens do passado ultrapassam talvez a percepção presente; é concebível inclusive que seu passado inteiro esteja virtualmente desenhado em sua consciência; mas esse passado não o interessa o bastante para separá-lo do presente que o fascina, e seu reconhecimento deve ser antes vivido do que pensado. Para evocar o passado em forma de imagem, é preciso poder abstrair-se da ação presente, é preciso saber dar valor ao inútil, é preciso querer sonhar. Talvez apenas o homem seja capaz de um esforço desse tipo. [...] Todavia nossa existência decorre em meio a objetos em número restrito, que tornam a passar com maior ou menor frequência diante de nós: cada um deles, ao mesmo tempo que é percebido, provoca de nossa parte movimentos pelo menos nascentes através dos quais nos adaptamos a eles. Esses movimentos, ao se repetirem, criam um mecanismo, adquirem a condição de hábito, e determinam em nós atitudes que acompanham automaticamente nossa percepção das coisas. Nosso sistema nervoso não estaria destinado, dizíamos, a um outro uso. Os nervos aferentes trazem ao cérebro uma excitação que, após ter escolhido inteligentemente seu caminho, transmite-se a mecanismos motores criados pela repetição. (p. 88 a 90)


Mas se nosso passado permanece quase inteiramente oculto para nós porque é inibido pelas necessidades da ação presente, ele irá recuperar a força de transpor o limiar da consciência sempre que nos desinteressarmos da ação eficaz para nos recolocarmos, de algum modo, na vida do sonho. O sono, natural ou artificial, provoca justamente um desinteresse desse tipo. Recentemente foi sugerida, no sono, uma interrupção de contato entre os ele mentos nervosos, sensoriais e motores. Mesmo se não nos ativermos a essa engenhosa hipótese, é impossível não ver no sono um relaxamento, pelo menos funcional, da tensão do sistema nervoso, sempre pronto durante a vigília a prolongar a excitação recebida em reação apropriada. Ora, é um fato de observação comum a "exaltação" da memória em certos sonhos e em certos estados sonambúlicos. Lembranças que se acreditavam abolidas reaparecem com uma exatidão impressionante: revivemos em todos os detalhes cenas da infância inteiramente esquecidas; falamos línguas que não lembrávamos sequer de ter aprendido. Mas nada mais instrutivo, a esse respeito, do que aquilo que acontece em certos casos de sufocação brusca, entre os afogados e os enforcados. O indivíduo, voltando à vida, declara ter visto desfilar diante dele, num tempo muito curto, todos os acontecimentos esquecidos de sua história, com suas mais ínfimas circunstâncias e na própria ordem em que se produziram. (p. 180 e 181)


Mas estamos tão habituados a inverter, para a maior vantagem da prática, a ordem real das coisas, padecemos a tal ponto a obsessão das imagens obtidas do espaço, que não podemos nos impedir de perguntar onde se conserva a lembrança. Concebemos que fenômenos físico-químicos tenham lugar no cérebro, que o cérebro esteja no corpo, o corpo no ar que o circunda, etc; mas o passado uma vez realizado, se ele se conserva, onde se encontra? Colocá-lo, no estado de modificação molecular, na substância cerebral parece simples e claro, porque temos com isso um reservatório atualmente dado, que bastaria abrir para fazer fluir as imagens latentes na consciência. [...] Tal sobrevivência em si do passado impõe-se assim de uma forma ou outra, e a dificuldade que temos de concebê-la resulta simplesmente de atribuirmos à série das lembranças, no tempo, essa necessidade de conter e de ser contido que só é verdadeira para o conjunto dos corpos instantaneamente percebidos no espaço. (p. 173 e 174)


Dizíamos que as ideias, as lembranças puras, chamadas do fundo da memória, desenvolvem-se em lembranças-imagens cada vez mais capazes de se inserirem no esquema motor. À medida que essas lembranças adquirem a forma de uma representação mais completa, mais concreta e mais consciente, elas tendem a se confundir com a percepção que as atrai ou cujo quadro elas adotam. Portanto, não há nem pode haver no cérebro uma região onde as lembranças se fixem e se acumulem. A pretensa destruição das lembranças pelas lesões cerebrais não é mais que uma interrupção do progresso contínuo através do qual a lembrança se atualiza. (p. 146)


Para que uma lembrança reapareça à consciência, é preciso com efeito que ela desça das alturas da memória pura até o ponto preciso onde se realiza a ação. Em outras palavras, é do presente que parte o apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensório-motores da ação presente que a lembrança retira o calor que lhe confere vida. Não é pela firmeza desse acordo, pela precisão com que essas duas memórias complementares se inserem uma na outra, que reconhecemos os espíritos "bem equilibrados", isto é, os homens perfeitamente adaptados à vida? O que caracteriza o homem de ação é a prontidão com que convoca em auxílio de uma situação dada todas as lembranças a ela relacionadas; mas é também a barreira insuperável que encontram nele, ao se apresentarem ao limiar da consciência, as lembranças inúteis ou indiferentes. (p. 179)